Os Maias (1888) — Sinopse

 

Em 1875, os Maias, uma antiga família da Beira agora reduzida a dois varões: o senhor da casa, Afonso da Maia e o seu neto Carlos, vêm habitar a Casa do Ramalhete, em Lisboa. Este é o dado inicial que despoleta a narrativa que, nos primeiros capítulos, consta fundamentalmente de um movimento retrospectivo que permitirá ao leitor recuperar o tempo vivido pelos antecessores de Carlos da Maia nos quase sessenta anos anteriores: a juventude e exílios de Afonso da Maia, a educação, casamento e suicídio de Pedro da Maia, a formação de Carlos, incluindo a sua passagem por Coimbra.

Comecemos por Afonso da Maia, o patriarca retratado como um paradigma moral, síntese das virtudes do Portugal velho, ideia que o próprio desmente aludindo aos seus gostos de “velho bonacheirão”: os livros, a poltrona, o jogo de whist, a inseparável companhia do seu gato, o “Reverendo Bonifácio”. A incursão na sua juventude revela-nos no entanto “o mais feroz jacobino de Portugal”, um acérrimo defensor dos ideais liberais, que lhe valeram a expulsão da casa paterna. Confrontado com duas alternativas, a de assumir politicamente uma posição, ou retirar-se para Inglaterra, optou pela última, trocando, de uma assentada só, o futuro da nação pelas corridas de Epson. O único senão desta vivência cosmopolita veio a ser a inadaptação de sua mulher: uma devota papista entre bárbaros protestantes que se inteiriçou na defesa de Pedro, o filho, sonegando-o a qualquer contacto (mesmo católico) nessa Inglaterra que teimava em rejeitar. Afonso da Maia não conseguiu impor-se e Pedro foi criado “entre saias”, em casa, iniciando-se na cartilha e nas declinações latinas. A bem da saúde mental da mulher e do seu herdeiro, Afonso acaba vendo-se forçado a regressar a Lisboa, onde se vai instalar na casa de Benfica. Talvez um pouco tardiamente, porque Pedro da Maia apresentava já sinais de instabilidade, oscilando entre paixões imoderadas, acessos de valentia e crises de melancolia. A morte da mãe acentuará essa instabilidade, alternando uma dor excessiva e mórbida com um período de vida dissoluta e turbulenta que culminará na paixão por Maria Monforte, a “negreira”. Maria Monforte era dotada de uma beleza extraordinária que nem o próprio Afonso da Maia, quando a vê de relance, ousa negar. Contudo, enquanto herdeira da «sinistra legenda do velho pai, uma facada nos Açores, um chicote de feitor na Virgínia, o brigue Nova Linda», jamais poderia aspirar ao casamento com o último dos herdeiros dos Maias. A paixão de Pedro revela-se, no entanto, incontornável e contra a vontade expressa de Afonso da Maia, acabará por casar com Maria Monforte. Nascem duas crianças, Maria Eduarda e Carlos Eduardo. Entretanto, Maria Monforte perde-se de amores por um napolitano de quem Pedro se tornara amigo. Os amantes partem, levando a filha mais velha e deixando o bebé Carlos como presente de consolação a Pedro. Desesperado, a Pedro nada mais ocorre senão procurar o pai. Entrega-lhe o filho e, incapaz de suportar a dor, suicida-se.

Por seu lado, Maria de Monforte não usufruirá por demasiado tempo da felicidade pecaminosa que subtraíra a vontade de viver ao marido. Primeiro morre-lhe a filha dessa relação ilícita, depois perde o amante, e ei-la forçada a sobreviver com a filha de Pedro no estrangeiro. A sua beleza serve-lhe de passaporte. Protegida de uns e outros, abrirá as portas da sua casa para receber e rodará voluptuosamente em bailes e serões, entre amantes, amigos e estranhos. Maria Eduarda cresce pois entre os cetins, veludos e jóias maternas, resguardada da verdade apenas pela ingenuidade própria da infância. Chegada à adolescência, e apesar de desconhecer a verdade da sua filiação e de uma estadia num colégio, talvez movida pelo mesmo gene que arrastara sua mãe para a fuga e o seu pai para a morte, Maria Eduarda deixar-se-á, também ela, arrastar pelos seus inquietos sentidos. Primeiro é a fuga com Mc Gren, que se resolverá ainda num casamento de circunstância e do qual nascerá a filha Rosa. Depois, entre o desespero de uma viuvez precoce e as necessidades mais básicas de sobrevivência, cederá aos caprichos e solicitações da vida “civilizada”, fazendo uso do que deus lhe deu. Viverá por sua conta e risco à conta de quem puder pagar. Será o caso do brasileiro Castro Gomes…

Retornemos a Carlos, abandonado pela mãe e órfão de pai, deitado no seu berço num quarto em Benfica, em casa do seu circunspecto avô… Eis pois o velho Afonso, senhor da educação desse neto que passará a ser a razão da sua vida. Carlos desenvolve-se supervisionado por um preceptor inglês na quinta de Santa Olávia, perante os olhares complacentes mas chocados dos vizinhos e amigos. De um salto chegaremos à juventude de Carlos da Maia e à sua partida para Coimbra para estudar Medicina. Um amigo, João da Ega, será a “nota” mais importante que adquirirá em Coimbra para a sua vida futura. Carlos forma-se em Medicina e parte depois para a Europa, por onde viajará durante um ano.

Regressa a Lisboa no Outono de 1875 onde, por decisão do avô, ficariam a morar para que Carlos não desbaratasse o conhecimento e as oportunidades. Para fugir aos fantasmas do passado, Afonso pretere a casa de Benfica em favor do Ramalhete. Carlos parece pleno de projectos: abrir um consultório, montar um laboratório para investigação, escrever um livro. Mas o que passa essencialmente para o leitor é a indolência crescente de Carlos que, consultório aberto e laboratório apetrechado, vai revelando uma incapacidade crescente para o trabalho, uma letargia na pose e na atitude, que ele próprio, a partir de determinada altura assume perante a indiferença tolerante desse avô que vê talvez no neto o reflexo do diletantismo que marcou a sua própria vida. A juntar-se a esse fracasso profissional, Carlos vai coleccionando alguns entusiasmos e outras aventuras consumadas. Isto até ao dia em que, pela primeira vez, Carlos da Maia entreverá Maria Eduarda: «uma senhora alta, loira, com um meio véu muito apertado e muito escuro que realçava o esplendor da sua carnação ebúrnea». Uma vez mais tocado pela seta de Cupido, Carlos irá viver o deslumbramento pela «brasileira» num crescendo. Inicialmente, sentir-se-á subjugado pela sua beleza, em seguida será tomado por uma avidez em conhecer todos os pormenores capazes de esclarecer a sua identidade; depois, numa ansiedade permanente, provocará encontros ditos casuais até atingir o “rubro” e mover a sua vida em função de uma oportunidade real de lhe ser apresentado. Para tal, mostra-se disposto a recorrer a esquemas, a servir-se de “pessoas”, a suportar o insuportável Dâmaso, tudo em função dessa paixão cuja tónica nunca deixa de ser quase absurdamente platónica — Carlos vê Maria Eduarda como uma deusa e o que mais deseja é a oportunidade de a poder venerar. Uma vez íntimo da casa, Carlos não poderá impedir o coração de aspirar cada vez mais alto. Por outro lado, o ambiente acolhedor que Maria Eduarda lhe proporciona (e a ausência do “marido”) parece criar a envolvência necessária para o inevitável casamento entre duas almas gémeas. Ou seja, Carlos declara-se, Maria Eduarda retribui os sentimentos, inicia uma confissão que não termina, mostra-se disposta, em nome do amor, a enveredar por uma vida adúltera, e acaba aceitando a proposta de Carlos de ir refugiar os seus amores na Quinta dos Olivais.

Entretanto, Carlos não pode deixar de ignorar um inevitável regresso de Castro Gomes (o “marido”) do Brasil, e para tal vai fazendo projectos que subtraiam Maria Eduarda das obrigações maritais: uma fuga para Itália, parece-lhe a solução. No entanto, a imagem do avô abandonado, por natureza incapaz de entender uma paixão avassaladora, atormentam-no. Mas esse peso na consciência ser-lhe-á retirado. Avisado por uma carta anónima, Castro Gomes regressa do Brasil para limpar a sua honra. Carlos ficará siderado com as revelações que, deixando a dignidade do outro intacta, destroem a sua: «aquela senhora não é uma menina que eu tivesse seduzido, e a quem recuse uma reparação. A pequerruchinha que ali anda não é minha filha… Eu conheço a mãe somente há três anos… Vinha dos braços de um qualquer, passou para os meus… Posso pois dizer, sem injúria, que era uma mulher que eu pagava.» A dor de Carlos sobrepõe-se à própria humilhação de ter sido enganado. Dirige-se aos Olivais disposto a romper com Maria Eduarda. No seu íntimo anseia por humilhá-la, castigá-la com o seu desprezo. Ilusoriamente, acredita que da dor de Maria Eduarda lhe advirá algum consolo. Chegado ao local, depara-se com uma visão devastadora: Maria Eduarda é a imagem viva do desespero. Reage às acusações de Carlos com lágrimas e pedidos de desculpa. Alega o amor que sentia por ele como única defesa para a sua falta de verdade. O pedestal onde Carlos desde o início a colocara impediu-a de revelar fraquezas de um passado que ela própria queria esquecer. Carlos não resiste e tudo perdoa, levando o êxtase ao ponto de a pedir em casamento. E recomeça o idílio.

Por mais precauções que sejam tomadas no sentido de se acalmarem as invejas e calarem as más línguas, Carlos da Maia, personagem “central” da vida lisboeta, é por excelência o alvo perfeito para a perfídia dos homens de letras. Aparecerá publicado na Corneta do Diabo um artigo hediondo, cujo mau gosto só é ultrapassado pelas verdades que revela. Ega, na qualidade de amigo devotado, conseguirá “comprar” o editor e suster a tiragem desse número que seria um verdadeiro insulto ao casal e, acima de tudo, ridiculizaria definitivamente Carlos, atingindo a sua honra pessoal e familiar.  Dâmaso, o autor, não se livrará de uma retratação pública, em que se confessa mentiroso e bêbado. Será essa confissão de uma bebedeira crónica, hereditária, que levará um seu tio, o Sr. Guimarães, num acto de justa indignação a abeirar-se de João da Ega para prestar determinados esclarecimentos. Foi este o motivo que aproximou as duas personagens e será essa aproximação que levará o Sr. Guimarães a pedir a colaboração de João da Ega para fazer chegar às mãos da irmã de Carlos um cofre com papéis importantes que lhe fora confiado havia muito tempo pela mãe de ambos — Maria de Monforte — em Paris. Ainda que sem tomar consciência do peso das suas revelações, o Sr. Guimarães, enquanto agente do destino, provoca a súbita inversão dos acontecimentos. Através dele — primeiro o amigo, depois o procurador e finalmente Carlos — tomarão conhecimento da verdadeira identidade de Maria Eduarda e dar-se-ão conta da dimensão da catástrofe. Carlos, perdido de dor e, à semelhança do que seu pai fizera em tempos idos, recorre ao avô para conhecer a versão deste sobre sua mãe e a possibilidade real de a irmã estar viva e em Lisboa. E mesmo com provas evidentes, ainda assim Carlos não renunciará de imediato à sua paixão por Maria Eduarda. Voltará a estar com ela e será preciso a morte do avô, oprimido pela tomada de consciência da relação incestuosa entre os netos, que o levará a tomar a única atitude possível: a separação. Será uma vez mais João da Ega, na qualidade de amigo, que irá contar a verdade a Maria Eduarda, aconselhando-a a ir viver para Paris. Em seguida, partirá com Carlos para uma longa viagem. O romance termina com o regresso de Carlos a Lisboa, dez anos depois da “catástrofe”. Uma visita ao Ramalhete, o reencontro com os amigos, uma conversa com Ega onde conseguem chegar a uma teoria definitiva da vida: «nada desejar e nada recear… não se abandonar a uma esperança — nem a um desapontamento…».

 

Adaptado de: José Ribeiro da Costa —  Os Maias em Análise:

Antologia Comentada, Porto Editora, 1997.